21.4.20

Anamnese


Lia atentamente em minha poltrona, num vôo entre a Austrália e a Malásia, esse livro sobre a Teoria da Viagem de um filósofo francês quando, naquele específico trecho, no tempo de duração da luz de um raio, um tanto de mim entrou no eixo.

Não sei ao certo como cheguei a este livro, talvez estivesse escrito na minha História de viagens, talvez foi apenas a sucessão randômica dos acontecimentos da vida rotineira, talvez eu estivesse a procura de algo da vida e acabei encontrando o que quis: "Taí ó, o que você queria. Agora seja feliz!"

O primeiro fato relevante sobre o livro da Teoria da Viagem é que ele viajou para chegar em minhas mãos. Quase um mês de viagem do Brasil para a Austrália, chegou até a mim no exato momento em que me preparava para uma outra, rumo a Ásia. E o livro viajou de novo, desta vez comigo. E nós três – o livro sobre viagem, a viagem em si e eu, a viajante – juntamente com essa relação entre ler e viajar, viajar e ler e estar viajando enquanto se lê um livro sobre viagens só me fez perceber uma coisa: viajar é o negócio do meu corpo, alma e mente: consciente, subconsciente e inconsiente. Do que eu sofro mesmo, minha gente, é de wanderlust*.

E cresceu dentro de mim quando ainda mal cabia dentro de mim. Ainda criança, no meio da sala de casa, me via cercada de objetos exóticos vindos de terras distantes. Minha imaginação voava. E eu, pequena, me tornava gigante. Animais entalhados da África, uma luminária em forma de mesquita, das Arábias. Papiros enquadrados do Egito, porcelanas delicadas da Ásia. Enquanto meus olhos varriam esses objetos, minha mente, com encanto, percorria o mundo e seus cantos.

Para me ajudar a chegar a qualquer lugar, peguei carona na leitura. E cada vez que lia, mais meus olhos para um mundo infinito se abriam. E era dentro do meu quarto, meu mundinho restrito e apertado, onde mais aprendia das coisas, das pessoas e dos lugares, ainda que sabendo que de nada conhecia. Foram os livros que me permitiram viajar para lugares onde não se compra passagem. E, se os livros nos permite imaginar e levar a mente e a alma pra viajar… nada mais justo do que o corpo acompanhar.

Um dia, olhava despropositadamente a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, pela janela do escritório. A vista era realmente espetacular, mas meu corpo falava: com enxaqueca, apoiava a cabeça na mão direita; e os olhos, parados e perdidos, olhavam o céu sem ver a vida passar. De repente, deu-se a combustão: um avião passou rente ao Pão de Açúcar, o barulho do motor me despertou daquele estado de estupor. Pisquei algumas vezes. Meus pensamentos, que viajavam longe, além-mar, voltaram bem decididos e bateram de frente exatamente comigo. Pensei: preciso ir embora daqui. Um ano depois, parti.

E agora, depois de doze anos...

Depois viver e viajar, depois de viajar e viver, depois de viver para viajar e de viajar para viver... depois de tanto! depois de tantas viagens e tantas outras viagens que se desdobram, orbitam e habitam nas viagens...

Depois de tantos quilômetros e quilômetros acumulados nos calos desses pés famintos por comer poeira; quilômetros e quilômetros de paisagens que esses olhos jamais se cansarão de captar; milhares de pessoas diferentes e indiferentes que passam pela gente e, em questão de segundos, um esbarrão, um pôr do sol, um sorriso trocado, uma música ambiente, qualquer paixão compartilhada numa esquina qualquer da vida conecta nossas vidas. E a viagem nos toca e tudo se desloca. E de repente o ângulo é outro, a perspectiva mudou, já não sou mais eu, mas sou eu mais. Alargada. Do tamanho do mundo das viagens. Do tamanho do mundo da leitura.

O segundo e último fato relevante sobre o livro da Teoria da Viagem é que ele me acompanhou numa segunda vez, numa viagem para a Europa. Em alguma poltrona qualquer do vôo que me levou de Berlim a Bruxelas, lá ele ficou. Poderia ter me esforçado de modo a resgatá-lo, mas como creio firmemente que são através das ironias da vida que as coisas fazem sentido, o deixei ser livre. Meu único arrependimento foi de não ter deixado uma dedicatória para quem o encontrou, mas deixo aqui pra você, leitor:



* Wanderlust, palavra alemã, pode ser traduzida como um desejo intrínseco e profundo de viajar. É formada pela junção de wander (verbo de origem wandern), que tem como significado a prática de caminhada ou trilha + lust, que significa luxúria, ou seja, um desejo, uma vontade profunda.

O sentimento de wanderlust é representado pelo desejo de viajar pelo mundo acima de qualquer coisa. Também corresponde a um sentimento de desconforto quanto se está estável nalgum lugar, pois quanto mais se viaja, mais lugares surgem no mapa para se visitar e mais inquieta a pessoa se torna em relação a mudar de lugar.


Quanto mais uma pessoa que "sofre" de wanderlust se alimenta desta ânsia, mais este sentimento cresce.